segunda-feira, 11 de abril de 2011

O Sótão

       
         Só quando evocamos algumas lembranças do tempo de criança é que temos a dimensão do quão rico de sentidos eram os acontecimentos que faziam o nosso cotidiano. A criança, falo isso por mim, potencializa de uma forma os vários elementos que compõem uma situação que a torna mágica na hora, e agora, quando somos adultos e paramos para relembrá-la, ela se torna, mais do que tudo, engraçada.

        Para quem teve a felicidade de ser criança morando em uma casa, e sobretudo em uma casa em uma zona rural, com um pátio grande, com árvores, grama, mato, cobra, cachorro, passarinho (livres), ninho de passarinho, galpão, casa na árvore etc, esse espaço adquire uma simbologia de “mundo infinito a ser explorado”, no qual, a cada dia, surge uma nova fronteira a ser desvendada, um novo espaço cujos recursos esperam por serem utilizados. Lembro de períodos em que brincava na parte de “cima” do terreno, o lugar mais distante dos olhos de meus pais, mas também um tanto misterioso pra mim, pois não andava muito por lá. Era onde tinha um pessegueiro, que dava frutos duros e amargos (logo depois me dei conta de que estavam verdes...), mas enfim, lembro muito bem dele, de seu caule oleoso e estranho, de seus galhos esturricados e de suas folhas finas, alem do fruto amargo.

           Dizia que os espaços físicos ganham riqueza de sentido em nosso cotidiano quando somos crianças. Depois de adultos, eles assumem caráter mais pragmático – só quando nos permitimos um momento de lirismo é que eles novamente adquirem uma feição mais subjetiva. A criança não precisa fazer força pra isso o que é o maravilhoso do mundo infantil. Então, um dos espaços físicos que fazem parte de uma casa é o sótão. Tal espaço já foi cenário de muitos filmes, lembro principalmente dos filmes de terror americanos. Compreensível essa escolha, uma vez que são lugares para aonde vão coisas (ou pessoas – credo) a serem esquecidas e nas casas americanas o acesso é fácil, a escada termina na porta de entrada do sótão. Minha casa de infância não era assim, mas eu também tinha um acesso muito facilitado ao sótão. Vou explicar.

          Nossa casa foi construída em um terreno relativamente bem inclinado, como se fosse em uma colina de inclinação amena, tipo, muito íngreme para um terreno e pouco íngreme para uma colina... Tá, enrolei e não disse nada, pensa em um terreno inclinado. A casa era de alvenaria, retangular e bem larga, e sua fachada era virada para o lado de baixo do terreno. Assim, a fachada tinha uns 3 metros de altura, e a parte de trás ficava a 1 metro do chão. Lembro do período em que comecei a querer explorar aquele vasto, escuro e misterioso espaço. Olhava pelos espaços entre o telhado e a chapa de concreto, era escuro lá, só penetravam réstias de sol por alguma fresta. Via as silhuetas das madeiras que sustentavam o telhado, e só. Olhava, espiava, cogitava um dia saber o que aquele vasto lugar escondia. Seria meu sótão assombrado como os que eu via nos filmes?

          Um dia resolvi subir. Me preparei bem: chinelo de dedo de tiras novas, bermuda, camiseta e meu pequeno canivete (que perdi lá dentro L). Pela estrutura da casa, em um lado tinha um vão maior, onde seria a escada do segundo andar da casa (que nunca fora construído). Já estava mais crescidinho, e consegui escalar a parede. Lembro que foi difícil. Mirei de fora, trepei e entrei no sótão.

          Era um lugar quente, abafado, empoeirado. O coração já batia bem acelerado. Como reconhecimento, avancei alguns metros, abaixado, na penumbra. Cuidando cada passo, esquadrinhando cada centímetro de piso, torcendo pra não ser atacado por alguma aranha carangueijeira de 5 quilos e veneno ultrapowerfatal. Depois de alguns minutos, me ambientei com o escuro e a visão ficou melhor. Progrido mais uns passos. O telhado fica mais alto, consigo avançar, meio encurvado, lentamente. Começam as teias de aranha nas dobras das armações de madeira. A visibilidade cai novamente, pela falta de frestas entre as telhas. Fico mais tenso. Cada movimento é friamente calculado. Controlo a respiração, pra não ficar ofegante e fazer ruído. Sinto meus batimentos cardíacos a uns 2.036 por minuto.
    
      Aí acontece uma coisa que quase me desintegrou, quase virei pó, quase virei do avesso do susto: minha mãe me chamou de dentro de casa, só que ela estava bem embaixo de mim, num cômodo. Sabem o que seria isso? Uma voz abafada, lenta, amorosa até, mas que vem de baixo? É o CAPETA te chamando, chegou no Portal dos Infernos, azar teu, ninguém mandou te meter a corajoso.

      Foi uma sensação intensa, mas graças a Deus, curta. Resolvi sair dali, acho que já era hora de voltar mesmo.

      Durante um bom tempo não senti vontade de explorar o restante do vasto sótão.

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